O poder das palavras por César Benjamin
Oito e meia da noite, começa o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão: “O governo reafirmou hoje seu compromisso com o ajuste fiscal” – eis a manchete mais importante. Logo me dou conta da genialidade perversa da frase, vazia de informação, mas repleta de conteúdos positivos: “re-afirmar” mostra coerência; “compromisso”, de forma sutil, remete a lealdade; “ajustar” é tornar justo. Tudo soa bem.
Só ao ler os jornais do dia seguinte percebi que o fato gerador da manchete não era tão bom. Em seu esforço para alcançar (e superar) as metas acordadas com o FMI, o governo brasileiro havia cortado parte das verbas destinadas à merenda escolar. Era essa a “reafirmação” do “compromisso” com o “ajuste”, conforme a hábil escolha de nomes feita pelos jornalistas da Globo.
Nomear é muito mais eficaz que silenciar ou mentir. Quem esconde algo pode ser surpreendido, quando o que se ocultou vem à tona. Quem tem o poder de dar nomes define como os demais vão pensar. É o poder das palavras, que vem sendo exercido à exaustão.
Há anos, por exemplo, temos ouvido elogios à construção de uma economia "aberta”, associada à idéia de futuro. Sua suposta antítese, uma economia fechada”, seria típica de um passado ruim. A imagem é forte e fala por si. Um tempo “aberto” oferece mais oportunidades de lazer que um tempo “fechado”. Uma pessoa “aberta” é mais sociável que uma pessoa “fechada”. Logo, também na economia algo semelhante deve se dar. Ao deslizar, a palavra “aberta” carrega consigo aquele conteúdo positivo que lhe é atribuído pelo senso comum. Não importa que, nesse outro contexto, a dicotomia de “aberto” e “fechado” não tenha sentido nenhum. (Uma economia deve ser suficientemente “aberta” para otimizar o uso de seu potencial e induzir sua base produtiva a modernizar-se, e suficientemente “fechada” para manter equilibrado seu balanço de pagamentos e impedir a destruição de sua capacidade instalada. Fora disso, o que se tem é puro non sense.)
Outra recente mistificação desse tipo é a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. É fácil ver que, também aqui, o nome foi imaginado sob medida para impedir o debate: quem pode ser contra uma “lei de responsabilidade”? Ademais, o que ela diz parece ser coerente com a experiência de cada um: os governos (como os chefes de família…) não podem gastar mais do que arrecadam. Não é simples? Não. Em primeiro lugar, há muitos anos o governo brasileiro arrecada em impostos muito mais do que gasta com salários, custeio e investimento. Tem superávit primário. O déficit só aparece quando agregamos as despesas ao pagamento de juros ao capital financeiro. Como a lei não prevê – nem admite – a compressão destas despesas, mas sim das demais, ela poderia chamar-se “Lei da Prioridade do Uso de Recursos Públicos para Pagamentos aos Bancos”, ou “Lei que Declara que Educação e Saúde São Menos Importantes que Bancos”, ou “Lei que Torna Intocáveis os Lucros do Sistema Financeiro, Nacional e Estrangeiro, Mesmo às Custas de Cortes em Atividades Essenciais”, ou simplesmente Lei do Mais Forte – nomes que, pelo menos, teriam o mérito de permitir um debate.
Em segundo lugar, o exemplo doméstico não se aplica à ação de Estados nacionais. Ao contrário dos chefes de família, os Estados podem emitir moeda para fazer frente a compromissos que geram déficits. Quando a economia está funcionando abaixo de seu potencial, com capacidade ociosa e desemprego, como é o nosso caso, esta é a atitude correta. Se os gastos públicos tiverem efeito multiplicador sobre a atividade econômica, as receitas do próprio Estado aumentarão, alcançando nova posição de equilíbrio em um nível mais alto de utilização da capacidade produtiva instalada. Isso depende não só de quanto o Estado gasta, mas de como gasta. Comprar merenda escolar, por exemplo, além de socialmente mais justo, tem maior efeito multiplicador sobre a economia do que remunerar agiotas.
Há um sentido estratégico embutido na operação que transformou o “ajuste fiscal” em algo perene, agora elevado à condição de lei.
Medidas de austeridade monetária se associam ao baixo crescimento. Podem ser
válidas por períodos breves, para atingir objetivos macroeconômicos bem definidos. Mas não podem se eternizar, especialmente em um país dominado pelas
necessidades do desenvolvimento e da justiça social. Quem aceita essa receita não cresce, fica para trás. Quem fica para trás perde as condições de exercer sua soberania. Neste caso, como em inúmeros outros, menos do que debates técnicos, estão em jogo relações de poder.
Publicado na Revista Caros Amigos. em janeiro de 2002, na edição 58.
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Outra forma de "ver" a mídia abaixo, na "radioterapia" de Yeda: