‘Aldeia gaulesa’ do comunismo na França completa 80 anos de governos do PCF
Por Erica Campelo, no Opera Mundi
Estamos no ano 2010 depois de Cristo. Toda a França foi tomada por governos não comunistas. Toda? Não! Um município governado por irredutíveis comunistas ainda resiste.
Há 80 anos, a comuna de Ivry-sur-Seine, apenas cinco quilômetros ao norte de Paris e parte da região metropolitana da capital francesa, resiste ao enfraquecimento do comunismo como força política na Europa e ao encolhimento do próprio PCF (Partido Comunista Francês) – ao qual são filiados os prefeitos da cidade desde os anos 1920.
Naquela época, quando os efeitos da Primeira Guerra Mundial ainda eram sentidos, mais de 20 municípios da periferia parisiense aderiram ao comunismo. Formando um entorno sobre a capital da França, essas cidades seriam historicamente conhecidas como “cinturão vermelho” ou “periferia vermelha”. E Ivry, particularmente, é hoje uma das gestões comunistas mais antigas e duradouras do mundo.
Alguns dos elementos para compreender essa longa trajetória comunista se encontram já nas primeiras gestões munícipais. Os fenômenos de transformação urbana e as metamorfoses das comunas que cresciam ao redor de Paris eram uma questão fundamental e exigiam uma resposta administrativa nova na vida política francesa. Para o historiador Emmanuel Bellanger, pesquisador do Centro de História Social do Século XX, ligado à Sorbonne, o fenômeno “contribuiu para radicalizar a expressão política francesa e, em particular, reforçar uma nova radicalidade na periferia de Paris”.
Em 1925, o relojoeiro George Marrane, membro do PCF, assumiu pela primeira vez a prefeitura de Ivry. Na época, ele já era membro da central sindical CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores) e fazia parte do conselho de administração do jornal comunista L’Humanité. Foi prefeito da cidade desde então até 1965, menos no período de 1939 a 1945 – quando, em função da ocupação alemã na França, o Partido foi proibido no país. Antes de ser prefeito, Marrane já tinha combatido na Primeira Guerra quando assumiu e foi da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra.
Segundo Michèle Rault, chefe do serviço de documentação da prefeitura de Ivry, “Marrane deu prioridade aos principais temas da periferia e, em particular, à questão da habitação, que é importante até hoje”. Um bom exemplo dessa intervenção foi a criação do primeiro conjunto de moradias com aluguel moderado (HLM, na sigla em francês), em 1927, política que se tornou símbolo maior da administração comunista.
Crescimento
Na França, a atividade municipal se intensificou durante as duas guerras, os anos de ocupação nazista e desenvolveu toda sua potencialidade nos chamados “30 anos gloriosos” (1945-1974), período de grande crescimento econômico para a França. Com a libertação e o prestígio adquirido na Resistência, o PCF tornou-se uma grande força por muitas décadas. Como explica Rault, “as atividades para a infância, como as colônias de férias, as atividades esportivas, a educação e o conjunto dos serviços públicos constituem o centro das políticas desenvolvidas em Ivry, no pós-guerra”.
Outro fator que explica a continuidade dos mandatos comunistas em Ivry é a boa transição entre as gerações de políticos. Durante todo esse período, a cidade contou com apenas três prefeitos. Após Marrane, foi a vez do torneiro-mecânico Jacques Laloë assumir, em 1965. Ele participara da gestão de Marrane como o mais jovem político da França. Laloë exerceu suas funções por seis mandatos, até 1998, quando passou o cargo para Pierre Gosnat, o atual prefeito.
“Gosnat é filho de antigos militantes comunistas, neto de comunistas que foram eleitos em Ivry. Seu pai foi deputado, seu avô era um prefeito-adjunto já na primeira gestão comunista. A gente tem em Ivry uma coesão muito forte, mais forte que em outros municípios comunistas”, enfatiza Bellanger.
Desindustrialização
No entanto, as mudanças estruturais do país, começando ainda nos anos 1960 e se amplificando nas décadas de 1970 e 1980, foram parte da causa do enfraquecimento do partido.
“Um drama enfrentado pelas cidades foi o processo de desindustrialização. Assistimos a uma terceirização da economia e à passagem industrial para uma economia de serviços. Isso tem efeitos importantes, contribui para a pauperização de classes populares que não são formadas para se adaptar ao emprego terceirizado. Houve uma explosão do desemprego em cidades da periferia vermelha”, completa o pesquisador.
Em 1954, a cidade de Ivry – de perfil industrial desde o início do século XIX – tinha 54% de trabalhadores na indústria. Hoje, o setor acolhe apenas 19% da população economicamente ativa. Mesmo assim, Ivry ainda é um importante núcleo industrial da região metropolitana de Paris.
Invasão burguesa
Outro problemas que a gestão comunista em Ivry tem de enfrentar também é o fenômeno de “aburguesamento” (também chamado de “gentrificação”) da região. Michèle Rault destaca “a importância de novos segmentos sociais que se formam com a instalação de pessoas com um poder aquisitivo maior. Essas pessoas não têm a mesma relação com o Partido Comunista”.
Uma parte significativa dessa nova população é composta por parisienses que se deslocam para a periferia próxima da cidade em função da explosão imobiliária da capital.
O problema da moradia e sua importância na configuração social continua sendo uma agenda importante para a adminstração comunista. No plano político, segundo o historiador Boullager, “Ivry tem ainda hoje um importante setor popular” e, embora o PCF não tenha mais o monopólio do poder na periferia, o comunismo pode resistir, “nas cidades onde ele faz alianças com forças de esquerda. Eu penso que a unidade de diferentes famílias da esquerda vai ser reforçada pela vontade de barrar Sarkozy nas próximas eleições presidenciais. Essas alianças podem ajudar a reforçar também o comunismo nos municípios
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