quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Paulo Freire: uma conversa no Chile

Dia desses, numa roda de conversa; uns se espantavam que alguém não conhecesse Iberê Camargo; outros não entendiam como alguém podia não conhecer Milton Santos. Havia quem conhecesse ambos e certamente desconhecesse muitos tantos mais. Pois esta conversa me remeteu a uma das maiores lições de humildade expressas na literatura freireana: não há saber mais ou saber menos; há saberes diferentes [e complementares muitas vezes].

Cuidado! Esta expressão não pode ser banalizada! Rigoroso que era, com toda sua epistemologia, Paulo NUNCA propôs um empobrecimento do conhecimento científico ou sistematizado; apenas extraiu a ciência - a gnosis - de cada prática cultural e os conhecimentos produzidos pelos diferentes fazeres humanos - daí que trabalho seja uma categoria fundamental para Freire desde os anos 50 e 60.

Abaixo reproduzo trecho do livro Pedagogia da Esperança que ilustra bem essa ideia dos diferentes saberes. Socialmente válidos em contextos diferentes.

Em suas andanças, discutindo sobre educação, conscientização e organização popular era comum deparar-se com grupos acostumados ao discurso imobilizante de que nada sabiam ou de que, o que quer que soubessem, não tinha valor frente aos homens cultos e  letrados. Assim foi o encontro com um grupo de camponeses chilenos, já nos anos de exílio, logo após o golpe militar no Brasil.
Minha experiência vinha me ensinando que o educando precisa de se assumir como tal, mas, assumir-se como educando significa reconhecer-se como sujeito que é capaz de conhecer e que quer conhecer em relação com outro sujeito igualmente capaz de conhecer, o educador e, entre os dois, possibilitando a tarefa de ambos, o objeto de conhecimento. Ensinar e aprender são assim momentos de um processo maior – o de conhecer, que implica re-conhecer. (...) Entre outros ângulos, este é um que distingue uma educadora ou educador progressista de seu colega reacionário.  “Muito bem”, disse em resposta à intervenção do camponês. “Aceito que eu sei e vocês não sabem. De qualquer forma, gostaria de lhes propor um jogo que, para funcionar bem, exige de nós absoluta lealdade. Vou dividir o quadro-negro em dois pedaços, em que irei registrando, do meu lado e do lado de vocês, os gols que faremos eu, em vocês; vocês, em mim. O jogo consiste em cada um perguntar algo ao outro. Se o perguntado não sabe responder, é gol do perguntador. Começarei o jogo fazendo uma primeira pergunta a vocês.”

A essa altura, precisamente porque assumira o "momento" do grupo, o clima era mais vivo do que quando começáramos, antes do silêncio.  
Primeira pergunta:  
– Que significa a maiêutica socrática?  
Gargalhada geral e eu registrei o meu primeiro gol.  
– Agora cabe a vocês fazer a pergunta a mim – disse.  
Houve uns cochichos e um deles lançou a questão:  
– Que é curva de nível?  
Não soube responder. Registrei um a um.  
– Qual a importância de Hegel no pensamento de Marx?  
Dois a um.  
– Para que serve a calagem do solo?  
Dois a dois.  
– Que é um verbo intransitivo?
Três a dois.  
– Que relação há entre curva de nível e erosão?  
Três a três.  
– Que significa epistemologia?  
Quatro a três.  
– O que é adubação verde?  
Quatro a quatro.  
Assim, sucessivamente, até chegarmos a dez a dez.  Ao me despedir deles lhes fiz uma sugestão: "Pensem no que houve esta tarde aqui. Vocês começaram discutindo muito bem comigo. Em certo momento ficaram silenciosos e disseram que só eu poderia falar porque só eu sabia e vocês não. Fizemos um jogo sobre saberes e empatamos dez a dez. Eu sabia dez coisas que vocês não sabiam e vocês sabiam dez coisas que eu não sabia. Pensem sobre isto”. 
E por isso que dizia "Ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo..." . E por aí vai...

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